Vai, voa, solta o teu génio em fortes golfadas. Liberta o teu sentir, a tua alma, numa hemorragia incontrolável do que és. Respira a vida, sustém a ideia de morte, que para essa tens toda a eternidade para olhar. Busca o pote no extremo do arco íris, que é a tua própria mente. Ama, o presente e o ausente, sem preocupação com quem não sabe o que isso é. Agradece, seres tu mesma, nessa unicidade tão comum aos outros também. Descontrai, fecha os olhos, inspira os aromas da vida e saboreia o que te convém. Ama. Acredita. Sente. Sofre. Ri. Crê. Sê. E tudo será também.
Existem livros que nos transportam, tranquilamente, para sítios e situações desconhecidos.
Prendem-me de tal maneira que, quando termino um capítulo no comboio, procuro calcular o tempo até ao meu destino, e, se não dá para ler totalmente outro, embrulho-o, carinhosamente, na sua capa, como quem aperta o casaco a um amigo e deixo-o descansar até ao transporte público seguinte - o metro.
Nessas alturas entretenho-me aolhata paisagem, com olhos de fora, a guardar o belo e o feio do caminho.
Até seguir para o metro.
Quando chego ao cimo da escadaria, lá está a multidão que, como eu, espera.
Já repararam como uma estação de metro, em hora de ponta, pode ser silenciosa?
Apenas se ouve a cadência regular das escadas e dos tapetes rolantes. Esporadicamente vozes: normalmente alguém ao telefone. Diálogos indicam a presença de jovens estudantes ou turistas.
Olhos no ecrã, olhos no chão, olhos no vazio.
Já na carruagem o ritmo mantém-se.
Um artista desenha uma obra digital. Duas vozes jovens discutem exercícios de ginásio. O resto é silêncio e solidão.
Decido manter o livro no saco, em respeito pela nossa solidão, que descubro tão acompanhada, e sigo o resto da viagem alternando entre o olhar no chão, olhar nas paredes do metro e olhar no vazio, procurando esconder o sorriso interior.
As decisões tardam, por incapacidade, por oscilação entre extremos, sem que o pêndulo da (in)consciência encontre um meio termo entre a razão e a emoção.
Na espera, a tontura, a vertigem da certeza de que, seja qual for o caminho decidido, a perda é irreparável.
E o não decidir também não pode ser decisão.
Quanto aos que, mais ou menos intencionados, mais ou menos intencionais, incitam à decisão dizendo "tens a obrigação de continuar" ou "deves mudar a rota", cheios das certezas nos caminhos alheios, respondo que não percebem.
Não vislumbram que por trás do semblante tranquilo se abre uma brecha dolorosa e me perco numa batalha sem vencedores.
Cansativamente em ebulição.
Vencedora? Só se for a certeza de que, de uma forma ou de outra, já fui derrotada.
Desenganem-se os incautos e os sonhadores, a vida é pura solidão.
Vivemos cada dia submersos na nossa pele, frequentemente cobertos por máscaras, mais ou menos coloridas, que disfarçam as escaras que o tempo deixa marcadas no corpo e na alma.
Nascemos, com alguma sorte, fruto do amor de outrem, que nos concebe e sonha de forma mais ou menos inconsciente.
É, curiosamente, dessa união de dois que nasce a nossa solidão.
E arrastamo-la pela vida, intercalando com ilusões de companhia.
Por vezes, algo, ou alguém, oferece-nos tréguas de companheirismo, abafando a noção exacta da nossa solidão. Para que depois continuemos sós. Dizemos que solitário é o caminho de quem se quer uno consigo mesmo.
No entanto, tememos a solidão com a mesma intensidade com que tememos a morte, sua irmã. Talvez por não sabermos o que fazer com esse animal estranho que habita em nós e que se chama "Eu".
Para fugir ao olhar interior mergulhamos em relações - de amor, amizade ou qualquer outra camaradagem evitável - com uma entrega desesperada, sem, no entanto, nos entregarmos efectivamente aos outros. Ou a nós próprios.
Defendemo-nos assumindo ser condicionados por uma sociedade que na verdade somos nós que condicionamos. Excusando-nos a despir a capa, com medo do outro que vê ou do outro que opina. Ou mais puramente para não nos enfrentarmos despidos de conceitos e nos vermos sem filtros, plenos na nossa solidão.
Até ao dia final, ao temido momento último, que mesmo acompanhado, nos leva ao infinito da nossa solidão.
Um suposto acordar para hoje, revelou-se um entrar num tempo desencontrado.
Revi-te onde nunca tínhamos estado e conversámos sobre o que não existiu.
Como se de um mundo paralelo se tratasse, senti a saudade do futuro que já não vem, dos sonhos repetidos, numa espécie de perda de sentidos, de recuperação de sentires e desorientação do espírito.
Com medo de ser um fim de algo, assaltou-me a nostalgia do real, daquele mesmo real que tanto me cansa, e numa pressa de despedida peguei no que estava à mão para enviar um abraço a todos os que não estão.