Medos, sonhos, sentimentos e sentidos alerta.
Doçuras, travessuras, bons humores, irritações. Aqui todo o meu mundo fica guardado.
Um pouco do que sou. Ou do que não sou.
Medos, sonhos, sentimentos e sentidos alerta.
Doçuras, travessuras, bons humores, irritações. Aqui todo o meu mundo fica guardado.
Um pouco do que sou. Ou do que não sou.
Esta manhã, quando acordei, olhei pela janela e, através dos cortinados azuis, percebi a luz brilhante que me chamava lá fora.
Uma manhã de bela luminosidade!
Curiosamente, não sei se induzida pelos sonhos da noite, se pelo efeito da luz velada, veio-me à memória uma história de uma autor que aprecio - Somerset Maugham, sendo a história pouco relacionada com a leveza da manhã.
Ao longo do dia, por várias vezes, voltou à mente a história triste de dois seres que só se encontram verdadeiramente quando já é tarde.
Mas, muito mais do que o abismo de uma trágica história de amor, agrada-me nas histórias de Maugham a dignidade com que tanto gostava de presentear muitas das suas personagens. Nem que fosse por um breve instante.
Esta história não é excepção. Há algo no final que me faz pensar, que para ela, possivelmente o encontro com ele não tenha vindo, afinal, tarde.
Talvez seja isso que o cortinado azul me devolveu: talvez não exista demasiado tarde, quando afastamos os cortinados e nos reencontramos com a luz.
Talvez o momento em que olhamos sem véus, seja o momento preciso para o fazermos.
Dizem que este é o tempo para aproveitar. Para ser produtivo. Aprender algo novo ou desenvolver um talento.
Não para mim.
O tempo é de olhar para dentro e enfrentá-los - os nossos demónios negros. E Deus sabe como os meus estão acordados.
Oho-os nos olhos, frente ao espelho. Julgava-os domados, mas eis que surgem, plenos de força acumulada pelo retiro que lhes impus. Até que o retiro passou a ser meu.
Ouço os meus velhos pecados, a chamar por mim, enquanto puxo de um cigarro. Por enquanto não vou.
Os silêncios externos mataram os internos e os demónios voltaram.
Riem-se de mim, troçam do meu erro maior: ter-me perdido de mim, no esforço de os domar.
Chamam-me: Vem, ainda vens a tempo. Acolhe-nos e segue o verdadeiro caminho. Riem-se, com risos claros, fortes. Sussurram com vozes doces, há muito perdidas.
Mas do outro lado os meus anjos seguram-me, convidando-me a resistir, a perseverar na minha luta. A permanecer. Sádicos.
No fim disto tudo, quando o tempo voltar, quem sabe, retiro os anjos do caminho e enegreço-me de vez, mergulhando no abismo de onde nunca cheguei a sair.
Hoje, ao fim de mais umas horas de teletrabalho, enquanto fechava o "escritório", dei comigo a pensar que era capaz de me habituar a isto, de não sair para trabalhar.
Cerrar-me em casa, sair uma ou duas vezes por mês, para socializar e não me tornar (mais) bicho.
Chamei-lhe o "efeito quarententa". Um surto combinado de 24 dias em casa e 'entas anos de vida.
Perante esta ideia tirei um vestido do armário, para o dia de amanhã, e um verniz da caixa, para colorir os dias.
Sentei-me no meio da cama e, calma e concentradamente, pintei cada uma das unhas da primeira mão.
Por cada unha uma despedida de pensamento, de sonho, de ilusão. Por cada pincelada rosa, uma descoberta do que já não sou, uma despedida de onde já não fui.
Ao final da segunda mão fiquei frente a frente com o meu eu despido, despedido de mim mesma.
Uma espécie de versão em bruto. O perceber do que já e o que ainda não foi.
Deitei-me comigo mesma, ausente de sonhos ou planos.
Antes de dormir, uma última olhadela ao vestido, que quase certamente, amanhã voltará ao seu lugar no armário.
A aguardar-me no futuro, apenas, para já, uma noite de sono.