Cansada, embora a hora matinal ainda, saí do trabalho e segui o apelo do meu corpo em direcção ao mar.
Os barcos entravam a barra, lentos, Lisboa escondida na neblina, eu perdida dentro de mim.
Sentada no muro sobre as rochas desabei minha raiva, minha tristeza, minha frustração numa confissão silenciosa sobre o mar.
Sobre mim, um sol brilhante, mas que não aquece por dentro.
Como quem compreende os meus pensamentos o mar / rio confronta a minha zanga, aumenta a sua fúria sobre o velho pontão, quebrado, como eu.
Lembro, desolada, os dias da infância em que o percorríamos, descalços e inconscientes, desafiando as ondas com a mesma intensidade com que hoje somos desafiados pela vida.
À medida que o céu se veste de cinzento e o mar liberta a minha alma, cresce dentro de mim a vontade de me descalçar, fazer a dobra das calças e desafiar a sensatez saltando para as rochas e mergulhando os pés nus no mar.
Soubesse eu chorar, e ao mar que contemplo entregaria o mar que me invade por dentro!
Sei que, então, seria capaz de, de novo, fazer o meu barco ao mar.
Em cada segundo que me calo, pelo menos dois seres continuam a se amar e a falar de amor.
Mais um vírus mata muita gente, e de novo uns quantos dizem que é só a alguns, como se as doenças fossem um envio abençoado, purificador, de algum deus enlouquecido.
Mais uma criança nasce num mundo que poderá estar, ou não, pronto para ela.
Homens e mulheres continuam a morrer pelos seus ideais, que deveriam ser mais que tal: liberdade, direitos humanos, paz, liberdade de expressão...
O Nobel da Paz continua entregue a uma instituição que tenta o impossível: matar a fome a milhões no mundo.
Mulheres e homens continuam a matar por incompreensão de conceitos e princípios, sejam eles religião, amor ou dinheiro.
O riso das crianças continua a soar.
A economia continua a ser um jogo para quem pode, enquanto quem não pode paga o preço.
Os pássaros continuarão a cantar, os peixes a nadar, a vida a existir.
Que diferença faz, então, eu hoje não falar de amor?
Hoje solto a minha força, liberto a minha voz e digo que é tempo de passar da palavra à acção.
Assumo o meu riso, choro, força, medo, raiva ou paixão.
Arrogo-me o direito aos sentimentos, à emoção, dispensando as palavras.
Hoje não vou falar de amor, deixarei as palavras para um qualquer amanhã.
Talvez por isso, num intervalo do trabalho, um jardim me tenha parecido uma boa escolha para o descanso.
O jardim estava calmo, quando me sentei, decidida a ler.
As flores junto ao muro, chamavam a si as borboletas e as abelhas, brilhantes apesar da entrada no outono.
Tudo combinava para me roubar a atenção do livro: o sol quente, a luz, a ausência dos sons humanos.
Acabei por ceder, e pousei o livro sobre o muro e entreguei-me, de corpo e alma, à paisagem.
Entrega de corpo e alma... Como quando éramos nós, penso agora.
Fechei os olhos, respirei fundo, preparei-me para aproveitar o tempo para uma pequena meditação.
Respirei fundo mais uma vez, quando a brisa outonal me soprou no pescoço, livre dos cabelos, presos no alto.
Sorri e olhei à volta. Continuava só.
Nova inspiração profunda, e de novo a brisa me acariciou a nuca, mas agora impregnada com o teu cheiro.
Mantive os olhos fechados, mas agora sem calma. O coração acelerou.
No meu ouvido, a tua voz: Respira fundo. É agradável, aqui. Já fizeste o que te pedi?
Na memória, a tua voz a pedir uma promessa. Que não cumpri. Ainda não. Espera.
Abri os olhos, apenas para confirmar que continuava só. Impossível a tua presença. Ali ou em qualquer outro lugar. Entre nós já não há distância nem proximidade. Apenas tempos e memórias.
Deixei-me ficar um pouco mais no jardim, agora menos brilhante.
O dia arrefecia. Era hora de voltar ao trabalho.
Numa parede, uma frase que podia ser tua. Que poderia ter sido minha.
Depois de uma pequena caminhada de 4 kilometros, com direito a conversa profunda sobre a vida, com quem já me acompanhou em muitas caminhadas, a tarde do feriado foi passada a rever o meu currículo.
Está na altura de preparar mudanças.
Olhando para o meu cv, o que lá está e o que não está, faço uma retrospectiva e sorrio pela quantidade de vezes que mudei o rumo à minha vida, por escolha na maioria. Felizmente. Tenho problemas com a ideia de estagnar. Sinto necessidade de manter a minha vida em movimento.
Talvez pelo historial de família de gente que se sentou e não mais se levantou.
Têm sido tantas as vezes que revirei tudo e recomecei - novos trabalhos, novos desafios. Mas sempre sem sair da minha cidade base.
Há poucos anos sentia-me desconfortável com esta minha história. Recentemente aprendi que me deu vantagens, capacidade de adaptação, experiências incríveis e o melhor de tudo: gente que entrou no meu coração e na minha história pessoal, mesmo que por breves minutos.
Neste momento reconsidero tudo de novo. Como quem me conhece há muito diz: lá vem a comichão dos sete anos. Até sair deste meu canto (que de canto tem muito pouco) e partir. Não há filhos para arrastar comigo nesta aventura, por isso sinto-me à vontade para o ponderar.
Não sei se acontecerá, não sei se acabo por ficar aqui. Não é o medo de me arrepender que me trava, mas a necessidade de pesar todos os pratos da balança.
Estava nesta luta quando me entregaram uma encomenda que esperava há alguns dias: um livro de poemas e um cd. Perfeito para o final de uma tarde de feriado.
Pousei a encomenda, por abrir, para não ceder a tentações e terminei o meu trabalho. Respondi a alguns emails. Li alguns dos (fabulosos) blogs que por aqui se escrevem e lá me virei para a encomenda.
A preparação da mudança; o olhar do currículo; a revisão da vida, do que se conseguiu e o que (ainda) se não alcançou; tudo me deixou um bicho de insegurança e o pensamento "E se estou a fazer asneira outra vez", isto enquanto abria a minha encomenda.
Até que do embrulho do cd veio a mensagem que me fez sorrir:
É isso que tenho que aprender. É que para mim, eu devo ser perfeita: não no sentido do perfeccionismo, mas no sentido da afeição.
Talvez seja essa mesmo a mudança essencial a fazer antes de partir, ou mudar o que quer que seja. Aceitar a minha perfeição, com a mesma força com que aponto as minhas imperfeições.
Levantei-me da mesa de trabalho, fui até ao espelho mais próximo, pisquei o olho à imagem que me sorria e sentei-me com um poeta a falar-me de amor, da vida, de ética.
Afinal, para mim eu devo ser a perfeita companhia.
Ou como dizia o anúncio, se eu não gostar de mim, quem gostará...
Na verdade, começou a mudar há ano e meio, mas foi de Janeiro para cá que o comecei a sentir.
Foi uma mudança gradual, construída, nuns pontos voluntariamente, noutros por imposição da vida. Mas tudo se conjugou para o meu "hoje" .
As considerações começaram a surgir ao reler alguns dos textos desta semana, de e-mails e mensagens que troquei, de reuniões que tive.
Nas suas várias modalidades fui percebendo a mudança que vivo em mim.
Mas, acima de tudo, foi hoje durante o café da manhã, com vista para o mar, que muito se revelou.
Nunca na minha vida tive tanto tempo livre. Dou-me ao luxo de passar um serão exclusivamente a ler um livro, sem passar pelo computador antes, ou durante. Sem pensar em prazos por cumprir.
Continuo a ter coisas para fazer, mas ao meu próprio ritmo, sem ninguém a apressar-me. E isso é bom!
Mas também sobra tempo para se pensar no que se fez e não fez; no que se disse e o que ficou por dizer. Acima de tudo no que ainda se quer, mas não se tem.
E percebi. Porque levei a sério (tão a sério) algo que provavelmente não era para o ser. Percebi que te cobrei aquilo que não era para cobrar. Que mesmo dizendo que não acreditava no que me dizias, algo em mim quis muito acreditar. E que, tão ao contrário do que faria em qualquer altura da minha vida, insisto em vez de largar.
Quando disse que não, algo em mim gritou sim, mas sabia que não podia ser.
Quando te cobrei, tudo em mim gritou "não faças isso, não és assim. Não o merece".
Mas o excesso de tempo pode roubar a nossa racionalidade, tornar-nos mais frágeis, fazer-nos sentir aquilo que não nos é habitual - medo, hesitação, ciúme, dependência, seja o que for.
Até reencontrarmos o equilíbrio. Que foi o que, em pequena medida, o mar hoje me deu.
Assim, agora é tempo de ser.
De te dizer obrigado pela participação neste processo. Que és livre de partir. Como és de ficar.
Eu, por aqui estou. E sou.
E continuo a gostar de ti, sem que tal me faça mal.