Segunda semana de férias. Como resultado, sinto o meu ser mais apaziguado.
Numa pausa dos afazeres diários, estendo-me no sofá, de frente para a janela. Desta perspectiva pouco mais vejo, além da copa despida das árvores e do céu.
Se as árvores, despidas de folhas, me evocam o frio da realidade dos dias, o céu pontuado por nuvens traz algum calor.
Parecem algodão, espalhado com mais ou menos primor. Umas mais esfarrapadas, outras mais compostas, vogando lentas pelo meu horizonte. Ilusoriamente parecem ao alcance da mão.
Lembram-me sonhos. Lentos, passam por nós, quase alcançáveis, mas que se desmancham, esfarrapam ou seguem o seu caminho independente das nossas vontades.
Deixo-me por elas embalar, a compensar uma noite muito mal dormida, de sonhos difíceis.
Quem sabe, talvez uma delas sirva de transporte e desembarque num outro lado, onde dois braços me esperam, a aportar as minhas inquietações.
Chego à conclusão que este ano pretende ser antipático mesmo até ao fim.
Pessoas que não poderei abraçar, por estarem longe e não poderem vir cá; pessoas que estando perto não poderão partilhar os belos momentos da nossa tradicional véspera de Natal.
No entanto, resolvi que vou dar luta a este ano até ao fim.
Assim, amanhã a manhã será passada na cozinha; hoje recolhi os pedidos dos doces de eleição para à tarde ir entregar onde me for possível chegar.
E fica combinado: seja em Janeiro, Fevereiro, primavera ou verão, faremos de novo as azevias, os sonhos de abóbora, as fatias douradas, refrescaremos o espumante e festejaremos de novo o Natal de 2020.
Com tudo o que temos direito - abraços, gargalhadas e jogos de tabuleiro.
A todos os que me acompanham aqui e que me deram o prazer de conhecer os seus textos ao longo deste no louco, votos de um muito bom Natal!
"Todos elogiam o sonho, que é o compensar da vida. Mas é o contrário, Doutor.
A gente precisa do viver para descansar dos sonhos."
Mia Couto in "Venenos de Deus, Remédios do Diabo"
A frase foi-me oferecida assim, sem comentário, nem esclarecimento.
Estaquei a turbulência dos meus pensamentos esvoaçantes, e, enquanto os versos das Águas de Março acompanhavam as nossas chuvas de Dezembro, apercebi-me que nada me poderia ter feito mais sentido nestes dias que têm corrido.
Estou cansada de sonhar.
Sob a minha capa de racionalidade, o sonho é permanente.
Cansativamente presente.
Reflectindo-se na luta de cada dia para que passe a ser realidade.
Mas, creio, agora é tempo de viver; de dar descanso ao sonho, enfrentar a sucessão dia / noite e encontrar nos pequenos movimentos que me rodeiam a beleza e a poesia da vida ausente, embora sonhada.
Um dia de cada vez, despedindo-me dos sonhos já não atempados, nem esperados, e viver entre o ser e o estar de cada dia.
Excepto o rosa final de dia, reflectido no mar, a seduzir-me os sentidos.
Uma espécie de canto encantado, que me desliga do dia e me recolhe na promessa de uma noite serena.
Por vezes, nesses passeios à beira mar, deparo-me com caras há muito perdidas. Reencontros com amigos que, distantes em espaço e tempo, não o estão em sentimento.
O retempero de um sorriso, de um olhar que nos lê, sem necessidade de palavras vãs.
O cheiro do mar, o pato residente a voar em contra-luz.
Pequenas peças de uma vida passada junto a este mar.
Recordados com carinho em dias assim.
Dias que me pacificam, banhados a rosa ou laranja final de dia.